Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade
Quem já se debruçou sobre o mercado de créditos de carbono e tentou entender suas complexidades, sabe que se trata de um instrumento complicado, com diversos problemas. Há controvérsias sobre se ele oferece, de fato, o que propõe, a redução das emissões de gases de efeito estufa, e se ele não prejudica povos e comunidades que vivem em territórios tradicionais. Além disso, paira sempre uma suspeita de greenwashing sobre o mercado de carbono, de difícil de esvanecimento.
Como se não fosse suficiente tal cenário e a certeza que ele apenas retarda a adoção de medidas realmente eficientes para lidar com a crise climática, desenha-se no horizonte um novo mercado, o de créditos de biodiversidade. Ele já vem carregando os mesmos problemas e controvérsias do mercado de carbono, mas consegue ser ainda mais mirabolante. Isso porque o mercado de carbono se baseia numa equivalência – um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 fixada – mas em que equivalência o mercado de créditos de biodiversidade deveria se fundamentar?
O cerne da ideia de biodiversidade é a pluralidade, ou seja, a diversidade de genes, populações, espécies, comunidades, ecossistemas e paisagens, interagindo em relações múltiplas, boa parte delas desconhecidas por nós. O que deveria, então, servir como medida para uma possível equivalência para os créditos de biodiversidade? Além disso, sabemos que a persistência dessa biodiversidade está umbilicalmente ligada aos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais e seus territórios. Como seus modos de vida se expressariam nos créditos de biodiversidade?
Vale lembrar que essa controvérsia já alimentou nossas angústias no passado. Nas discussões do Código Florestal de 2012 acerca da compensação da reserva legal para regularização, a ideia de que deveria haver alguma espécie equivalência entre as áreas a serem compensadas causou bastante polêmica. Isso porque ali ainda seria possível limitar biomas e algumas outras características ecológicas. No caso dos créditos de biodiversidade, a busca por equivalência parece ser ainda mais difícil.
Em um rápido exercício para identificar elementos que deveriam ser considerados na tentativa de construção de uma equivalência entre um crédito e uma área com biodiversidade, é possível listar a extensão do habitat, sua importância ecológica, sua raridade, o estado de conservação da biodiversidade, sua localização em função das prioridades locais e do desenho da paisagem, suas possibilidades de conectividade, o efeito das mudanças climáticas sobre esse habitat, entre muitos outros. Imediatamente uma angústia aflora: como medir? Como atestar? Como garantir equivalência? E mais, essa equivalência é possível?
Talvez seja importante dar um passo atrás e tentar entender de onde surgiu essa ideia de um mercado de créditos de biodiversidade. Na origem, acredito eu, está uma espécie de “inveja” da Convenção do Clima que, ao criar o mercado de créditos de carbono atraiu atenção e engajou o setor privado em suas discussões. Esse tipo de situação não aconteceu com a Convenção da Biodiversidade (CDB) que perdeu espaço neste novo século e ainda tem dificuldade de dialogar com empresas. Assim, a CDB deu início a diversas estratégias para engajar o setor privado, mas pouco no sentido de coibir suas atividades predatórias e mais na tentativa de conseguir ajuda financeira para implementar os objetivos da Convenção. O novo Marco Global de Biodiversidade aponta uma lacuna de financiamento para a biodiversidade de cerca de 700 bilhões de dólares por ano até 2030. Também traz a ideia de créditos de biodiversidade, como parte de uma possível solução, entre suas metas.
Sobre a lacuna de financiamento, é interessante se perguntar se bastaria obter esses recursos e seria, então, possível deter a crise de perda de biodiversidade. Ou será que somente se esses recursos fossem deslocados de outros lugares, onde alimentam a crise da biodiversidade, para garantir a manutenção da diversidade biológica haveria possibilidade de sucesso? Inserir 700 bilhões de dólares por ano em ações para a implementação das metas do Marco Global de Biodiversidade, mantendo tudo mais como está, parece uma atitude com poucas chances de obtenção de êxito na interrupção do contínuo desaparecimento da biodiversidade.
Mais interessante seria, ao invés de criar um novo mercado de créditos de biodiversidade, cheio de complexidades, usar recursos dos incentivos e subsídios prejudiciais à biodiversidade, estimados em 1,7 trilhões de dólares em 2022, para garantir proteção para os territórios aonde a biodiversidade vem sendo conservada de fato, ou seja, as terras de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. A lacuna de financiamento poderia ser suprida de diversas formas, sem o mercado de créditos de biodiversidade, mas para além do debate acerca desse mercado, cabe analisar as causas da contínua perda de biodiversidade com a finalidade de averiguar se é o preenchimento dessa lacuna que resolverá o problema ou se são outras as estratégias que deveriam ser mobilizadas para tanto.
Seria possível elencar, entre muitas outras, algumas razões para a perda de biodiversidade tais como os modelos de ocupação da terra e uso dos recursos naturais que destroem a biodiversidade, agravam a crise climática e contaminam o ambiente; os persistentes incentivos econômicos e políticos a esses modelos; a falta de proteção e de políticas derivada do preconceito e da discriminação contra os que de fato mantêm a biodiversidade, ou seja, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais; e o excessivo consumo estimulado continuamente, cuja reversão deveria ser tratada como prioridade. E se assim fosse, os recursos viriam desse movimento, sendo desnecessária a criação do mercado de créditos de biodiversidade.
Por fim, vale a pergunta: a ideia é deter a perda de biodiversidade de fato ou criar um instrumento que retarda a adoção de medidas eficazes, dando às pessoas a falsa noção de que os problemas estão sendo resolvidos e que elas podem dormir tranquilas, sonhando com férias em resorts que destroem o litoral e com florestas em pé, a despeito do agronegócio?
Leia os demais artigos da série
Artigo #10: Dois para cá, trinta e dois para lá
Artigo #9: O para sempre, sempre acaba…