Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade
Não há dúvidas de que a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), um dos documentos derivados da Rio-92, ajudou a introjetar a questão da biodiversidade nas agendas nacionais. Não há dúvidas tampouco de que a CDB não conseguiu, em seus 32 anos de existência, reduzir o ritmo da perda de biodiversidade no mundo. As certezas sobre a Convenção, porém, acabam por aqui. Tudo mais flutua em um mar de dúvidas, principalmente devido à dificuldade da CDB em enfrentar seus problemas de frente.
Uma das questões mais aflitivas da CDB é a baixa implementação de seus dispositivos. Há, historicamente, a complexidade inerente aos instrumentos aventados pela Convenção, como o consentimento prévio informado e a repartição de benefícios. Os países são convidados a criar mecanismos para fazer com que tais instrumentos funcionem no âmbito de suas legislações, mas ao fazê-lo, quando fazem, as contradições dos próprios instrumentos saltam aos olhos e sua implementação se torna enviesada ou truncada. Ademais, boa parte dos artigos da CDB para serem colocados de fato em prática exigiria um confronto com os setores que destroem sistematicamente a biodiversidade, o que, em geral, não acontece. Há um desequilíbrio entre as partes envolvidas nas negociações para a implementação da Convenção que contrapõe setores econômicos poderosos, de um lado, e defensores da biodiversidade, sejam eles povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, socioambientalistas, pesquisadores ou órgãos governamentais, de outro. Tal situação só poderia ser revertida, ou pelo menos, amainada, pela presença de políticas públicas fortalecidas por governos que se posicionam abertamente a favor dos que defendem a biodiversidade e conseguem impor limites às atividades predatórias ao meio ambiente.
Ao fixar a compreensão da biodiversidade como “a variabilidade de organismos vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas”, a CDB fortaleceu a ideia de que a biodiversidade é um conjunto de elementos, que poderiam até mesmo ser abarcados por listas de genes, espécies, comunidades, ecossistemas ou paisagens. Pouca atenção é dada à expressão “complexos ecológicos de que fazem parte” e como resultado, as interações entre os elementos da biodiversidade – fulcrais para sua conservação – perdem relevância nas estratégias – falhas, como sabemos – de manutenção da diversidade biológica.
Para além dessa questão, a relação umbilical entre o clima e a biodiversidade parece ficar resumida ao desaparecimento de espécies e eventualmente de ecossistemas. As implicações derivadas da extinção de espécies, que podem se derramar sobre vastas paisagens, trazendo inúmeras consequências, não são valorizadas. A tradução disso é que o desaparecimento dos rinocerontes ou das jacutingas é visto apenas com a lástima com que brindamos cotidianamente as vítimas da violência sem fim da nossa espécie. Não que essa lástima não tenha razão de ser, mas as consequências do sumiço dessas espécies também deveriam ser levadas em conta, se ainda estivermos apostando na Terra como casa para a humanidade.
Outro aspecto a ser considerado é a forma pela qual a CDB apresenta seus objetivos: “a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqùitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes”, dando a impressão de que a repartição de benefícios é um objetivo em si e não uma estratégia de manutenção da diversidade biológica. Esse descolamento faz com que os mecanismos de repartição de benefícios sejam percebidos, muitas vezes, como inútil burocracia do Estado, sem nenhuma contribuição efetiva para a conservação da biodiversidade. Além disso, a implementação desse instrumento é particularmente delicada, principalmente quando há o envolvimento do conhecimento de povos indígenas, de povos e comunidades tradicionais e da agricultura familiar.
Tal constatação nos leva diretamente a outra questão que está no cerne da CDB e que mina suas possibilidades de implementação, como outras já mencionadas: o papel de povos indígenas e comunidades locais. Esse termo “povos indígenas e comunidades locais” é o usado pela CDB para se referir ao que, no Brasil, costumamos designar como povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultoras e agricultores familiares. Os próprios povos e comunidades incluídos nessa expressão passaram recentemente a se auto definir coletivamente como guardiãs e guardiões da biodiversidade. No que é provavelmente seu artigo mais famoso, o 8j, a CDB reconhece a relevância do conhecimento de povos indígenas e comunidades locais para a manutenção da biodiversidade, incentiva seu uso com a aprovação e a participação desses povos e comunidades e encoraja a repartição eqùitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento.
Um reconhecimento tardio, mas importante. É mister dizer, porém, que a CDB criou uma espécie de marco temporal para a aprovação do uso e para a repartição dos benefícios aferidos com as guardiãs e os guardiões da biodiversidade. Ou seja, vale a partir de 1992. Todo uso predatório, inapropriado, colonial e injusto que foi realizado antes dessa data foi automaticamente anistiado. Difícil imaginar que a CDB tenha sido escrita com a participação equitativa das guardiãs e guardiões da biodiversidade e por isso se torna fácil entender que nenhuma iniciativa de reparação tenha sido aventada. Assim, o papel de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultoras e agricultores familiares na Convenção não tem passado de um papel de, no máximo, coadjuvantes. O resultado é que não tem havido espaço para os debates acerca do modelo colonial que nos conduziu ao cenário de destruição que habitamos, nem acerca das consequências diretas e nefastas do racismo e da violência sobre a persistência da biodiversidade.
Muitas outras questões poderiam ser levantadas para mostrar como a própria gênese da CDB conspira para sua baixa implementação. O minueto que se desenha em torno da COP16, a ser realizada em outubro na Colômbia, é um bom indicativo disso. É a primeira COP depois do lançamento do novo Marco Global de Biodiversidade. Com 23 metas a serem cumpridas até 2030, o marco não é derivado de uma reflexão feita sobre o fracasso das metas anteriores. Lançou novas metas em um mundo que a cada dia se torna mais complexo, sem levar em conta a falência do multilateralismo, as evidentes transformações geopolíticas e a ascensão da extrema direita. Sem fazer uma autocrítica acerca de sua gênese colonial, de sua adesão ao mundo do capital, de sua dificuldade de lidar com as guardiãs e guardiões da biodiversidade e com sua fraqueza diante dos setores econômicos que destroem a biodiversidade, a Conferência das Partes da Convenção será mais uma pantomima, onde todos expõem, todos discutem, todos negociam e todos tem a mais absoluta certeza de que nada disso servirá para deter a queda do céu.