Em reunião do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), realizada na última terça-feira (5/08), o presidente Lula anunciou oficialmente que o Brasil saiu do Mapa da Fome das Nações Unidas (ONU). Esse mapa identifica os países onde mais de 2,5% da população vive em situação de subalimentação crônica. A exclusão do Brasil da lista representa um avanço no combate à fome, e também reforça o papel das políticas públicas e das populações que sustentam a segurança alimentar com base na sociobiodiversidade. Mais do que números, o relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo 2025”(SOFI) revela que, por trás do indicador técnico, há rostos, histórias e territórios que seguem resistindo — e alimentando.
Entre os protagonistas dessa luta estão os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs). Agricultores familiares, ribeirinhos, quilombolas, indígenas e extrativistas foram determinantes para manter viva a produção baseada na diversidade e respeito aos biomas, mesmo durante os períodos mais duros de desmonte de políticas públicas.
“Essa conquista é fruto da resistência de quem nunca deixou de plantar, colher, partilhar e alimentar o Brasil com dignidade. Os PCTs mantiveram viva a produção de alimentos saudáveis e em equilíbrio com os biomas nos momentos mais difíceis, quando os programas foram desmontados e a fome voltou com força. São guardiões dos alimentos, das sementes e das soluções. Eles precisam ser valorizados, escutados e apoiados com políticas duradouras. Sem eles, o Brasil não sairia do mapa da fome”, afirma a secretária executiva do ÓSocioBio, Laura Souza .
A engenheira de alimentos Bianca Tozato, que integra o Eixo de Economias da Sociobiodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA) e também faz parte da coordenação executiva do ÓSocioBio, representando as instituições no Consea, reforça a importância da participação social no processo de reconstrução da segurança alimentar no país. “A saída do Mapa da Fome mostra o que já sabíamos nos territórios: a comida de verdade sempre esteve viva nas mãos dos povos tradicionais. Mas garantir que ela continue chegando à mesa de quem precisa exige uma escuta ativa e a participação direta dessas comunidades nas decisões. O Consea é o espaço para isso. Precisamos ocupar, propor e construir juntos uma política alimentar justa, diversa e permanente”, destaca Bianca.
Catrapovos Brasil: a força das redes na construção de soluções
A Mesa de Diálogos Permanente Catrapovos Brasil, que articula povos e comunidades tradicionais de diferentes estados e regiões, foi fundamental para manter ativa a produção de base agroecológica, fortalecer circuitos de abastecimento solidário e lutar por políticas públicas que respeitassem a diversidade dos territórios.
Com ações como feiras, doações emergenciais, cozinhas comunitárias e monitoramento político, a rede se destacou como um elo entre os territórios e a cidade, entre os saberes ancestrais e os espaços de decisão institucional. As experiências das Catrapovos no processo de reconstrução da segurança alimentar nacional é mais um exemplo de que não há saída da fome sem democracia, território e justiça alimentar.
Para o analista de conservação do WWF-Brasil, Abilio Vinicius Pereira, sair do mapa da fome é importante, e também é necessário medidas estruturantes para manter o país fora dessa rota. “É o caso da demarcação dos territórios tradicionais e o avanço da Reforma Agrária, da ampliação dos recursos do PNAE e PAA, do enfrentamento aos desertos e pântanos alimentares, do combater a inflação dos alimentos e da erosão genética da agrosociobiodiversidade. Além de escalonar a restauração dos passivos ambientais com forte participação de projetos que conciliam espécies alimentares e não alimentares, como sistemas agroflorestais e agrocerratenses. Isso associado ao fortalecimento das economias da sociobiodiversidade, da alimentação tradicional e da agroecologia. Por fim, também ressalto as experiências encantadoras tanto das cozinhas solidárias e da agricultura urbana, como de programas e editais específicos para os Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs), como o PAA e PNAE, entre outras iniciativas”, acrescentou.
Ao lado do ÓSocioBio, da ANA, do CNS, ISA, WWF Brasil, FIAN e de tantas outras articulações de base, as experiências das Catrapovos mostram que é possível erradicar a fome a partir da valorização de quem produz comida com cuidado, cultura e compromisso com a vida.
Saiba mais
As Comissões de Alimentos Tradicionais dos Povos (Catrapovos) são compostas por representantes de órgãos públicos federais e da sociedade civil, e discute os entraves, desafios e adequações na legislação e normas nacionais, para viabilizar as compras públicas da produção de povos indígenas e comunidades tradicionais. A experiência inicial no Amazonas inspirou outros 17 estados a criarem suas próprias redes e comissões estaduais. Hoje, há comissões em 18 estados brasileiros: Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Tocantins, Santa Catarina e São Paulo. Em fase de criação, encontram-se outros seis estados: Alagoas, Espírito Santo, Paraná, Piauí, Rio de Janeiro e Sergipe.
Desde sua criação, em 2021, a Mesa de Diálogos Permanente Catrapovos Brasil começou a discutir a migração da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) para o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF). Esses documentos funcionam como identificação do(a) agricultor(a) familiar e possibilita o acesso a diversas políticas públicas, como PNAE, PAA e crédito via Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Quanto à aceitação do NIS (Número de Inscrição Social) em substituição à CAF, a Catrapovos conseguiu ampliar sensivelmente a participação de povos e comunidades tradicionais nos editais, chegando a 57% de participação na região Norte.
A luta continua
Durante a reunião do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o presidente Lula enfatizou: “A fome tem que virar problema político”. E virou. A reinserção do Consea nas estruturas de governança, destacada na reunião, recoloca o Brasil na vanguarda das políticas públicas de combate à fome. A presidenta do Consea, Elisabetta Recine, falou ainda sobre o enfrentamento da crise climática e que essa transição passa, necessariamente, pelos saberes e práticas dos PCTs. “Não é possível pensar em um futuro sustentável sem comida produzida por mãos que cuidam do território”, defende.
O Brasil avança, contudo, ainda que haja motivos para celebrar, a luta não está encerrada. Segundo dados apresentados por Recine, sete milhões de brasileiros ainda vivem em insegurança alimentar grave, e a inflação dos alimentos segue desafiando o acesso à comida saudável.
Conforme lembra Laura Souza, a saída do Mapa da Fome é um passo, mas não o destino final. “Nosso papel agora é consolidar esse avanço, garantindo que ele permaneça, se expanda e seja sustentado com justiça. Os povos tradicionais já mostraram o caminho. Cabe ao Estado segui-lo com seriedade e compromisso”, finaliza.
Participe: o Consea também é seu
Além do anúncio feito na terça-feira (5), o Consea seguiu programação com a 2ª Reunião Plenária Ordinária. Foram realizadas as reuniões das Comissões Permanentes e da Comissão de Presidentes de Conseas Estaduais (CPCE); apresentação da sistematização das propostas dos grupos de trabalho da 1ª Plenária; definição da organização e do processo de trabalho do Conselho; diálogo aberto com a plenária e, por fim, uma sessão deliberativa com apreciações e votações.
A construção de um Brasil livre da fome exige a participação ativa de quem vive e atua nos territórios — nas feiras, nas roças, nas escolas, nas cozinhas e nas comunidades. As reuniões do Consea são públicas e abertas à sociedade civil organizada. Leve sua demanda, sua experiência e ajude a transformar realidades com a força do seu território e da sua voz. As próximas plenárias acontecem nos dias 7 e 8 de outubro e 9 e 10 de dezembro.
FOTO: Ricardo Stuckert/PR