Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade
A frase da Alice Walker – “tempos difíceis exigem danças furiosas” – embalou a criação do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade, o ÓSocioBio. Eram tempos furiosos e as danças, difíceis. O momento presente, talvez não tão furioso quanto o de 2022, ano da criação do ÓSocioBio, mas ainda difícil, segue pedindo danças furiosas.
Será o tango uma dança furiosa? As relações entre a biodiversidade e o clima parecem acontecer ao som de La cumparsita: uma dança dramática, agressiva, mas acima de tudo de uma tristeza sem fim. Clima e biodiversidade estão profundamente ligados, afetando-se mutuamente. Talvez no passado, essas relações pudessem ser expressas por um carimbó ou uma outra dança mais alegre. Hoje, porém, as relações são delicadas e perigosas.
O mais dramático, quiçá, seja a ideia de que para salvar os membros – tão maltratados – desse par, só com danças mais do que furiosas: teriam que ser revolucionárias. Tomemos dois exemplos, um de cada componente do par: de um lado, a incapacidade e insuficiência dos mecanismos existentes para deter a perda de biodiversidade, de outro a necessidade de adaptação climática.
Já de cara, os pares se confundem se a dança se dá em Pindorama… Quando estamos falando de perda de biodiversidade no Brasil, estamos falando principalmente de desmatamento e também de degradação dos ecossistemas. É justamente o desmatamento a causa maior das emissões de gases de efeito estufa no Brasil. Desmatamento dialoga com biodiversidade e com clima… Ou melhor, um se cala e outro ferve diante do desaparecimento dos ecossistemas. Por que é tão difícil controlar o desmatamento? Talvez porque ele esteja no cerne do que é o Brasil, país que destruiu sucessivamente seus biomas, acreditando, ainda hoje, que atrás da floresta ou depois do Cerrado, é que se encontram o desenvolvimento e o avanço do país.
O desmatamento está no coração do agronegócio brasileiro, não apenas porque para suas atividades é necessário converter áreas naturais em pastagens e campos agrícolas, mas também por convicção que floresta, Cerrado e Caatinga são sinônimos de atraso. Seria possível persistir na agricultura e na pecuária de outras formas, menos agressivas e menos produtoras de desigualdades. Seria possível uma interface amistosa com territórios de povos indígenas e comunidades tradicionais, bem como com unidades de conservação. Mas para que isso acontecesse, teríamos que viver em um outro modelo econômico que não esse onde a regra é acumular independente das consequências mais nefastas.
Se considerarmos o outro componente do nosso infeliz par, o clima e nos debruçarmos sobre as questões da adaptação climática, uma vez que a mitigação tem poucas chances de acontecer, veremos que chegaremos ao mesmo beco sem saída.
A adaptação climática é um tremendo desafio pois deve lidar com situações de grande complexidade e incerteza. Como projetar com antecedência intensidades e consequências de eventos climáticos extremos? Como calcular seus efeitos sinergísticos? Como proteger eficazmente uma população profundamente desigual com diferentes graus de vulnerabilidade?
Ou seja, não é possível que sejam traçadas estratégias de adaptação climática que produzam mais desigualdades, que sigam reproduzindo e reforçando os males que nos assolam e que não considerem questões raciais e de gênero. Isso quer dizer que para haver uma adaptação climática bem sucedida, ela terá que lidar com essas questões estruturais, colocando em xeque o modelo econômico no qual estamos inseridos, sob pena de nada resolver.
Vislumbra-se nosso casal a dançar em um beco escuro…
Paralelamente, pelas avenidas iluminadas, desfila a tecnologia, convencida de que para tudo trará soluções. Para a crise climática, vamos inventar uma geoengenharia; para as futuras pandemias, teremos vacinas cada vez mais eficazes; para os rios poluídos vamos dessalinizar o mar; para os solos contaminados, descobriremos outras formas de produzir alimentos; para a biodiversidade perdida, rematerializaremos os organismos a partir de sua informação biológica convertida em informação digital. Enfim, não há o que não seja possível fazer…
Evidentemente, nada disso será para todo mundo. Isso sempre deixará de fora os condenados da terra. Esses permanecerão relegados a um beco escuro…
Se não há dúvidas de que a tecnologia resolve uma quantidade significativa de problemas da humanidade, cabe ressaltar que ela é também produtora de desigualdades, pois não contempla todo mundo. Por exemplo, as tecnologias agrícolas que temos não impedem que ainda haja gente passando fome hoje. Há países sem nenhum acesso às vacinas, até mesmo as mais conhecidas e mais antigas. Saneamento básico é exceção em muitos lugares do planeta. Os números indicam que a tecnologia não chega para todas as pessoas. Além disso, é preciso pensar que a tecnologia não será capaz de resolver todos os problemas eternamente. O futuro que vislumbramos desse presente onde estamos é que a tecnologia vai solucionar problemas cada vez mais específicos para um grupo cada vez menor de pessoas que, não por mera coincidência, é o grupo que está sempre querendo devorar o planeta.
O problema é que nosso par não pode mais esperar. O tango toca, os passos e rodopios são feitos, mas o céu permanece invisível nesse escuro beco. Talvez ouçamos apenas seu estrondo, quando ele desabar sobre nossas cabeças.
Leia os demais artigos da série
Artigo #10: Dois para cá, trinta e dois para lá
Artigo #9: O para sempre, sempre acaba…
Artigo #8: Convenção da Biodiversidade: do fim até o começo