As regras sobre classificação de grau de risco da vigilância sanitária no Brasil estão prestes a mudar significativamente e com isso, milhares de produtores rurais familiares e empreendimentos econômicos solidários poderão ser afetados. É o que alertam especialistas sobre a proposta da consulta pública n° 1.249, de 2 de maio de 2024, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que discute uma nova Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) – o instrumento normativo da ANVISA. Uma carta assinada por mais de 160 entidades da sociedade civil e movimentos sociais pede a suspensão da consulta e o diálogo para participação social. Confira aqui. O documento pede que sejam realizados, antes da proposição da nova regulamentação, eventos como seminários, GTs e discussões com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
A consulta revisa os critérios de identificação e a classificação do grau de risco das atividades econômicas sujeitas à vigilância sanitária previstos nos seguintes normativos: RDC nº 153/2017 e RDC nº 418/2020, bem como da IN nº 66/2020. E incorpora alguns artigos da RDC nº 49/2013, que dentre outros assuntos, também previa uma classificação de riscos. De acordo com a agência reguladora, o objetivo é unificar esses marcos regulatórios em uma única resolução, padronizada nacionalmente. A medida está prevista no tema 9.1 da Agenda Regulatória 2024-2025 da agência, que institui o planejamento da atividade normativa e assuntos prioritários a serem regulamentados pela Anvisa durante um determinado período.
No entanto, a nova norma propõe a revogação da RDC nº 49/2013, que dispõe exclusivamente sobre a regularização para o exercício de atividade de interesse sanitário do microempreendedor individual, do empreendimento familiar rural e do empreendimento econômico solidário. Dentre os problemas da unificação dos normativos está a desconsideração das diferenças das atividades econômicas desenvolvidas pelo público-alvo da RDC nº 49/2013.
“A consulta propõe uma classificação de riscos genérica e padronizada, tendo como objetivo a ‘harmonização e padronização das atividades econômicas e das respectivas classificações de riscos’ para todos os produtos regulados pela Anvisa, sem diferenciação dos tipos de produtores. Ou seja, ‘inclui’ estes segmentos ao invés de diferenciá-los. Cairia por terra uma das maiores conquistas da RDC 49 de 2013, que foi reconhecer as especificidades dos riscos da Agricultura Familiar, MEI e Economia Solidária (ou as especificidades dos riscos da produção em pequena ou grande escala e do comércio de proximidade ou de longas distâncias, etc)”, diz Bibi Cintrão, pós-doutoranda no Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisadora associada ao Centro de Referência em Soberania e Segurança Alimentar – CERESAN/CPDA/UFRRJ.
A classificação do grau de risco existe para fins de licenciamento, inspeção, fiscalização, controle, monitoramento e educação sanitária. A RDC 49/2013 considera as especificidades dos empreendimentos de povos e comunidades tradicionais, e pequenos produtores rurais. A normativa possui parâmetros mais inclusivos e adequados, e foi construída por meio de um processo participativo inédito na ANVISA, com a contribuição de mais de 150 instituições, envolvendo mais de 6 mil participantes em seminários regionais, em todos os territórios do Brasil, segundo dados da própria Anvisa. Foi um amplo processo de consulta pública que envolveu diretamente a agricultura familiar, economia solidária e representantes de microempreendedores.
A Resolução se destacou ainda por apresentar um diferencial: a mudança de paradigma com diretrizes educativas para orientar e facilitar a fiscalização sanitária. Essa norma busca ultrapassar o antigo caráter punitivo da atuação fiscalizadora, adotando uma visão na qual o poder estatal atua como parceiro e educador do cidadão, sempre considerando o risco sanitário.
Agora, especialistas alertam para os problemas da consulta pública n° 1.249, que foi proposta após discussão interna no Sistema Nacional de Vigilância Sanitária (SNVS) sem a participação da sociedade civil organizada, que desempenhou um papel fundamental na construção da RDC 49/2013, especialmente no que tange à soberania e segurança alimentar e nutricional.
“A nova RDC confunde e omite elementos essenciais da atual RDC 49/2013. Entre os pontos mais críticos, como não mencionar a inclusão produtiva nem a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) nos princípios, ao contrário da RDC 49/2013, que foi resultado da inserção da ANVISA no programa Brasil sem Miséria”, explica Bibi Cintrão.
Rodrigo Noleto, coordenador do Programa Amazônia, do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), completa: “A RDC buscou considerar os costumes e conhecimentos tradicionais também entre os seus princípios, tradições da agricultura familiar, povos e comunidades tradicionais, quer dizer, a harmonização de procedimentos para promover uma justa e solidária inclusão social e produtiva. Então, desde o seu princípio, foi um ato normativo revolucionário dentro do sistema de vigilância sanitária. Para isso, pela primeira vez a ANVISA promoveu a realização de seminários e consultas públicas em todas as regiões do Brasil, para diferenciar esse setor da economia que era discriminado ou considerado invisível dos interesses da vigilância sanitária. E agora, por algum motivo, estão querendo desconstruir essa conquista para a sociedade”, afirma.
Noleto explica ainda que diferenciar a produção familiar e artesanal é promover justiça social e inclusão produtiva, pois as organizações comunitárias e familiares não possuem as mesmas oportunidades que empresas com acesso a crédito e assessoria, entre outras distinções. “A RDC 49, veio na forma da Lei, para trazer ‘razoabilidade’ quanto às exigências aplicadas, quer dizer, dar proteção à produção artesanal a fim de preservar costumes, hábitos e conhecimentos tradicionais, com segurança sanitária, pois os empreendimentos seriam incluídos no sistema de vigilância. Era esse o sentido da norma, de dar proteção aos consumidores, mas ‘amparar’ os produtores desprotegidos e discriminados por um sistema ‘segregador’, porque voltado para a grande indústria”, destaca Noleto.
A consulta pública ficará aberta até 11 de julho de 2024, permitindo que a sociedade envie sugestões e comentários sobre a minuta da nova resolução. Para mais informações e acesso à minuta da consulta, os interessados podem visitar o site da ANVISA.
Classificação de risco
De acordo com a Anvisa, risco sanitário é “a possibilidade que tem uma atividade, serviço ou substância, de produzir efeitos nocivos ou danos prejudiciais à saúde humana, animal ou ao meio ambiente”. A nova norma em consulta pública mantém a classificação de riscos em três níveis: alto, médio e baixo risco, para efeito de licenciamento sanitário, conforme a Resolução 62/2020 e aperfeiçoa a sua definição:
I – nível de risco I – baixo risco: atividades econômicas cuja oferta de produtos e serviços à população possuem baixa possibilidade de ocorrência de falhas, queixas técnicas ou provocar eventos adversos à saúde e ao meio ambiente.
II – nível de risco II – médio risco: atividades econômicas cuja oferta de produtos e serviços à população possuem possibilidade de ocorrência de falhas, queixas técnicas ou provocar eventos ou agravos temporários ou reversíveis à saúde, havendo tratamento adequado, bem como, ao meio ambiente.
III – nível de risco III – alto risco: atividades econômicas cuja oferta de produtos e serviços à população possuem alta possibilidade de ocorrência de falhas, queixas técnicas ou provocar eventos ou agravos com riscos à saúde e ao meio ambiente
As atividades classificadas como Risco I (baixo risco) são dispensadas de vistoria prévia e de licenciamento sanitário. De acordo com a agência, “há a necessidade de categorização das atividades econômicas através de um modelo de classificação de risco, uma vez que os atos autorização, licenciamento e funcionamento de empresas ou atividades econômicas de interesse à vigilância sanitária deverão ser eliminados ou simplificados”, explica a Anvisa. No entanto, a nova norma diminui muito o número de atividades consideradas de baixo risco e deixa pouca possibilidade para estados e municípios reverem esta classificação de risco de acordo com suas realidades específicas.
RDC nº 49/2013
A RDC nº 49/2013 foi criada, no âmbito dos atos normativos de vigilância sanitária, para o cumprimento das diretrizes do Plano Brasil Sem Miséria, de 2011, que previa a inclusão produtiva com “segurança sanitária de bens e serviços para promover a geração de renda, emprego, trabalho, inclusão social e desenvolvimento socioeconômico do país e auxiliar na erradicação da pobreza extrema”.
Texto: Dominik Giusti/Assessoria de comunicação do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio)