Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade
Há muito a inocência gastronômica ficou para trás. Não é possível mais se desviar da ideia que comer é um ato político e que tem infinitas implicações. Algumas delas, óbvias. Comer espécies ameaçadas de extinção é um bom exemplo. Defender que o bacalhau e o atum azul são insubstituíveis e que devem seguir sendo pescados e consumidos só não tem se tornado uma impossibilidade porque o mundo anda bem esquisito e o indefensável está na crista da onda. A ideia de que as espécies selvagens podem ser substituídas por aquelas criadas em cativeiro e que isso nos asseguraria um sono tranquilo também está em xeque. Camarões e salmões são criados de forma a contaminar mares e manguezais, para mencionar apenas dois exemplos.
O dilema do sushi vem de longe. Salmão e atum são os peixes mais usados em sushis e sashimis por aqui. Atuns são vítimas de sobrepesca em um mercado de difícil controle. Ademais, em muitos casos, os petrechos usados para sua pesca causam a morte de golfinhos, de tartarugas e até mesmo de baleias. O salmão selvagem é uma espécie ameaçada e os peixes criados em cativeiro causam, além de impactos ambientais, problemas de saúde. Ou seja, já não andava fácil comer sushi com a consciência pacificada.
Mas, a partir de agora, talvez o próprio ato de comer sushi esteja se tornando uma impossibilidade. A característica mais importante do peixe que está no sushi é que esse peixe está cru. Os mares estão ficando rapidamente mais quentes e talvez peixes crus – ou peixes vivos – se tornem mais raros em breve. Desde maio de 2024, as temperaturas do oceano vêm batendo recordes sucessivos. O ano começou com o mar cerca de meio grau centígrado acima da temperatura do início de 2023. Para além da tristeza dos apreciadores de sushi, ninguém sabe a extensão da influência desse aumento de temperatura sobre os organismos que vivem no mar. E certamente, deles sobre os que vivem nos ambientes terrestres. As relações entre os seres vivos são uma espécie de estrutura que sustenta paisagens e ecossistemas, e mantém o planeta convidativo para a nossa espécie. Quando partes da estrutura se degradam, outras surgem, mas quem saberá se serão benéficas para a humanidade?
Quando o oceano fica mais quente, a quantidade de oxigênio dissolvida diminui e o ambiente se torna mais ácido. Essas variações trazem diferenças – estranhamentos, eu diria – nos ciclos vitais de organismos e de comunidades. O branqueamento dos corais é um exemplo disso, bem como a maior presença de algas tóxicas que afetam a saúde de animais marinhos e de humanos. Quais serão as consequências desses fenômenos, ainda não sabemos. Há espécies que se adaptam, outras desaparecem. Há relações que ficam comprometidas e outras que surgem. Poderemos, ainda, contar com os recursos pesqueiros para alimentar uma parte significativa da humanidade? Ninguém tem a resposta.
Aos que pensam que os rios nos salvarão e ali ainda encontraremos peixes para um sushi amazônico ou algo assim, trago más notícias. Pesquisas mostram que os lagos da Amazônia estão em um processo de aquecimento sem precedentes, em uma média de 0,6ºC por década, desde 1990. O recorde nesse monitoramento feito por pesquisadores do Instituto Mamirauá aconteceu na seca de 2023, quando a temperatura do lago Tefé, a dois metros de profundidade, chegou a mais de 40ºC matando 209 botos. Como a dinâmica de inundação e vazante da Amazônia comunica lagos e rios continuamente, o que certamente colabora para o aumento da temperatura dos rios também, com consequências inimagináveis para a dinâmica da vida na região.
A mudança do clima é um agravante para a crise da biodiversidade e não podemos esquecer que clima e biodiversidade estão umbilicalmente ligados. A cada dia descobrimos mais conexões e retroalimentações entre biodiversidade e clima. Por exemplo, um estudo publicado em agosto mostra que altas temperaturas parecem atrapalhar o olfato das abelhas, um sentido fundamental para sua alimentação e para a polinização. Esse cenário pode impactar um grande conjunto de produtos da agricultura, afinal as abelhas são responsáveis pela polinização de cerca de um terço das culturas agrícolas alimentares. Há anos, o declínio das abelhas vem sendo reportado e em geral acredita-se que ele se deve à perda de habitats e à mudança climática. Ou seja, nem sushi, nem morangos, pepinos, tomates, pimentões, ameixas, cerejas, pêssegos, melões…
Esse e muitos outros exemplos que pipocam a cada dia mostram que pouco sabemos sobre a dinâmica da biodiversidade. Menos ainda, sabemos das consequências que as mudanças climáticas terão sobre as relações entre os organismos. Os modelos que criamos para fazer projeções sobre o clima futuro se revelaram incompletos ou equivocados. O clima está mudando mais depressa do que pensávamos. Agosto de 2024 quebrou os recordes de temperatura mais uma vez. Já se estuda os limites fisiológicos da nossa espécie para imaginar estratégias de sobrevivência. Será triste ficar sem sushi e sem tomates, mas parece que esse será o menor dos nossos futuros problemas.