Série Contagem Regressiva – Artigo #4: Quando os poetas se enganam…

Confira artigo da série "Contagem regressiva" para a COP 16 da Diversidade Biológica, o texto #4.

 

Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade

 

Já se pensou que poderíamos viver sem as caliandras. Com indiferença, já se vislumbrou o fim da floração do chapéu-de-couro.  Com pesar, já se imaginou que suportaríamos o fim dos ipês. Acreditamos que tudo pavimentaríamos, tudo acarpetaríamos com soja e milho e seguiríamos alegres e faceiros rumo à primavera.

Cecília Meireles já dizia “A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.” A primavera inevitável, ela viria, a despeito de tudo e de todos, depois do inverno, preparando terreno para o verão. Mas, olhe bem a sua volta, será mesmo?

Pablo Neruda insistia “Podrán cortar todas las flores, pero no podrán detener la primavera”.  Mas, poderá a primavera, realmente, persistir sem nenhuma flor, em um mundo onde o verão veio para ficar? 

Com a mudança do clima e a contínua conversão de ambientes naturais em áreas de agropecuária, cidades, equipamentos turísticos e buracos de mineração, poucas flores e poucos jardins aguardam a primavera. No calendário, já está ficando difícil de acreditar. Povos indígenas e comunidades tradicionais que sempre usaram a dança entre a biodiversidade e o clima para regular seus modos de vida – andorinhas que marcam a chegada das chuvas; rios que enchem e vazam, mostrando quando plantar, pescar ou caçar – já desconfiam desse cronograma.

O planeta está se tornando uma metamorfose ambulante, muda imprevisivelmente, desafiando modelos, projeções e poetas, gerando incerteza e temor. Pior para os condenados da Terra, sempre. Os flagelos os impactarão de forma mais contundente e as soluções não os alcançarão.

Não é diferente no Cerrado, mas talvez seja mais dramática a destruição de um ambiente desprezado, pouco valorizado, onde povos e comunidades tradicionais são percebidos apenas como uma população rural pobre que ainda não pode chegar às cidades e ali se integrar. A savana com a maior diversidade de árvores do planeta, com espécies únicas, o coração dos recursos hídricos de boa parte do país, fenece à sombra da Amazônia, ao som do réquiem para a Mata Atlântica.

Há queimadas, desmatamento, mineração, contaminação de solos e águas por agrotóxicos, sim, é verdade, mas o mal maior reside no nosso imaginário. Se a Amazônia, mesmo atropelada pelo agronegócio e pela mineração, ainda suscita preocupação entre os brasileiros, que em sua maioria acham importante conservá-la, o Cerrado parece terra de ninguém. Ou melhor, terra de poucos donos, pronta pra se converter em “celeiro do mundo”. Resta saber que mundo alimentará e a que preço.

É a narrativa de que o Cerrado não serve para nada, que sua vegetação é um “mato” a espera de ser limpo, que seus povos são pobres coitados a mercê de uma miséria sem fim que desenha a tragédia. É essa imagem, talhada a ferro e fogo, em nossas cabeças que não nos permite ver nem a beleza, nem a função do Cerrado. Mas não se trata apenas de saber… Isso não trará a primavera. Há tempos percebemos que a informação e os dados não bastam. Não é suficiente saber. A mobilização para a ação nasce em outro lugar. Talvez tenha relação com a empatia e com o afeto…

Empatia e afeto, principalmente se aqui falamos de alteridade, do outro, do diferente, do diverso, são artigos raros. Se eles fazem parte do caminho para a mobilização e para a mudança, estamos numa situação aflitiva. O Cerrado parece não comover… Será que bastaria que comovesse? E aqui, infelizmente, temos que abrir um parêntesis para enfatizar que temos, como espécie, naturalizado as questões mais atrozes, que persistem nos assombrando, mas não chegam a tirar o sono da grande maioria das pessoas. Vale para os dilemas ambientais, mas vale para as questões sociais, como a fome, a pobreza e as migrações, e para as guerras, como em Gaza e no Sudão. Um conformismo, talvez, plasmado na ideia de que o mundo é assim e que pouco podemos fazer para mudá-lo, devemos, ao contrário, no capacitar para aceitá-lo…

Em 2023, 47% de toda a perda de vegetação natural no Brasil foi concentrada na região onde o Cerrado encontra a Caatinga, conhecida como Matopiba, uma junção das siglas dos estados onde se encontra: Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Um aumento de 59% em relação a 2022, que já tinha sido um ano de maior desmatamento comparando com 2021. Ou seja, só nessa região, demos adeus, no ano passado a 8589 km2 de Cerrado. Pouco adianta dizer que é uma área do tamanho de Porto Rico, ou que é maior do que as Ilhas Canárias. Não comove, entre outros motivos, alguns complexos, outros, talvez, insondáveis, porque as pessoas acreditam que esse é o destino do Cerrado: ser uma paisagem do passado.

As comemorações sobre a queda do desmatamento na Amazônia e o pequeno papel que o crescimento escandaloso da perda de vegetação no Cerrado teve nas comunicações tanto oficiais quanto na mídia em geral são reveladores da situação dramática do bioma. A Amazônia, a Mata Atlântica e o Pantanal são considerados patrimônios nacionais na nossa constituição. O Cerrado, não. Uma sinalização emblemática de como o bioma é considerado relevante para o país.

A incompreensão sobre a importância das áreas naturais é tanta, que até mesmo propostas de retirar a vegetação nativa para evitar incêndios têm sido feitas nos legislativos do país. Como se, com tudo domesticado e dominado, pudéssemos ter um controle total sobre o mundo natural. Mas a primavera, essa que parecia chegar a despeito de nossa sanha predatória, para além do nosso controle, pode não chegar mais, para muito além do nosso controle.

Cada dia mais, vemos as projeções climáticas se acelerarem: o oceano esquentando mais do que o previsto, os níveis do mar subindo rapidamente, as temperaturas batendo recordes sucessivos e os eventos extremos se tornando parte da vida. Para a maioria da humanidade, entretanto, esse cenário ainda parece distante da vida cotidiana e nos momentos em que é possível vislumbrar, por entre as névoas do dia-a-dia, o mundo hostil que se avizinha, sob o efeito da crise climática, desviamos os olhos e apostamos na tecnologia.

É fato que a tecnologia ajuda a resolver muitos dos problemas da humanidade, mas há limites e não podemos seguir acreditando que ela poderá sanar todas as questões que emergirão da crise climática. Além disso, a tecnologia não chega a todas as pessoas, basta ver quantos seguem sem vacinas ou sem saneamento básico. Ambientes resfriados, roupas a prova de calor, casas resistentes a eventos extremos e água engarrafada são para poucos…

Se os números ajudam a perceber o quanto do Cerrado está sendo destruído, eles não auxiliam tanto quando a questão é saber o quanto resta. A tradução desses fragmentos de vegetação em um número não revela as nuances de sua distribuição espacial. Sabemos que áreas contínuas preservam mais biodiversidade pois mantem os processos ecológicos mais íntegros. Os remanescentes de Cerrado são fragmentos cada vez menores pulverizados na área original do bioma. Se nas condições que considerávamos normais, tais fragmentos não eram suficientes para proteger a biodiversidade, com a mudança do clima, o cenário se torna mais dramático, as espécies não têm para onde migrar quando o clima se modifica e os fragmentos são mais suscetíveis aos eventos extremos.

Pode até ser que a tecnologia garanta flores, ou prepare um jardim, mas a primavera, essa não chegará. A primavera não é uma coleção de flores, é um movimento da dança entre a biodiversidade e o clima, é uma interação entre diversos processos que acontecem em diferentes organismos, transformando o mundo. Cecília Meireles e Pablo Neruda que nos perdoem, mas parece que certo, dessa vez, estava Renato Russo que dizia em uma canção da Legião Urbana “que o pra sempre, sempre acaba “.

Seja o Cerrado, seja a primavera.