Série Contagem Regressiva – Artigo #3: Uma brecha para a vida florescer?

De 21/10 a 01/11/2024 será realizada a 16a Conferência das Partes da Convenção da Biodiversidade em Cali, na Colômbia. Neste texto, a pesquisadora Nurit Bensusan faz apontamentos que podem servir para barrar a perda de biodiversidade.

Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade

 

Na próxima semana, Cali receberá funcionários de ministérios do meio ambiente de todo mundo, diplomatas, negociadores, representantes de empresas e de ONGs ambientalistas dos quatro cantos do planeta. Por suas ruas passarão jornalistas, lobistas e delegações de todos os continentes. Seu céu acolherá povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e camponesas e camponeses dos mais diversos territórios. Na cidade da salsa se escutarão outras músicas, outros cantos serão entoados, outros ritmos povoarão corações. 

A 16a Conferência das Partes da Convenção da Biodiversidade aterrissa em Cali em um momento que clama por mudanças, mas que pouca chance tem de atender a este chamado. O novo Marco Global de Biodiversidade, estabelecido na COP 15, embora festejado como um avanço, não trouxe novidades que permitam vislumbrar um cenário mais auspicioso para a biodiversidade no mundo. Sua efetiva implementação, baseada no desenvolvimento de estratégias nacionais de biodiversidade, depende dos países com suas idiossincrasias, suas políticas internas e seus interesses econômicos.

Assuntos ligados ao financiamento das ações de conservação da biodiversidade, como a criação de um mercado de créditos de biodiversidade, prometem panaceias, mas parecem oferecer apenas mais do mesmo, com uma roupagem de mercado e de mercadoria.

Mesmo o tema considerado o mais quente da COP 16, que já tira o sono dos negociadores, o sistema multilateral de repartição de benefícios ligado ao uso de sequências digitais de informação genética, não trará a mudança necessária. Resolverá, talvez, questões importantes relacionadas com o acesso e o uso dessas sequências, mas não impactará o cenário de perda de biodiversidade, que se agrava a cada instante.

É talvez em outra parte que resida alguma possibilidade de mudança, talvez a Convenção da Biodiversidade esteja diante de uma oportunidade histórica, mas nem tenha se dado conta disso. Que povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultoras e agricultores familiares são os maiores responsáveis pela manutenção da biodiversidade que resta no planeta, não há dúvidas. Que setores econômicos, como o agronegócio e a mineração, são  artífices da destruição, poucos duvidam. Que a ciência e a tecnologia, aliadas ao consumo e aos interesses econômicos, são parte do processo que nos trouxe até aqui, é incontestável. É desse cenário que emerge a oportunidade que pode se consolidar na COP 16.

Um dos artigos da Convenção, talvez o mais famoso, o artigo 8j, reconheceu, pela primeira vez a importância dos conhecimentos, inovações e práticas de povos indígenas e comunidades locais para a conservação da biodiversidade. Diferentemente de outros instrumentos posteriores que têm como cerne direitos territoriais ou direitos à consulta, o foco da Convenção é o conhecimento tradicional.  Vale sempre lembrar que, evidentemente, a persistência desses conhecimentos depende da garantia de outros direitos, ligados aos territórios, ao acesso às políticas públicas, ao consentimento prévio informado, entre diversos outros. Desde sua assinatura, em 1992, a Convenção possui um grupo de trabalho ligado ao 8j e à medida que o tempo foi passando, se agregou a esse grupo, outros temas relacionados com povos indígenas e comunidades locais.

Quando o céu de Cali acolher povos indígenas de todo mundo, comunidades locais dos mais diversos rincões do planeta e camponesas e camponeses que cultivam terras por todas as partes, uma discussão será posta na mesa: a transformação desse grupo de trabalho em um órgão permanente da Convenção. Dois caminhos podem ser trilhados a partir desse momento. O primeiro nos conduzirá a mais do mesmo e não ajudará a transformar o trágico cenário de perda de biodiversidade no mundo. Esse caminho seria a criação desse órgão com atribuições semelhantes às do grupo de trabalho, ou seja, restritas ao artigo 8j e mais um punhado de temas que parecem ter relação direta com povos indígenas e comunidades tradicionais. Não há dúvida que é importante ter um órgão permanente ao invés de um grupo de trabalho, mas isso não é suficiente para a mudança. O outro caminho é a criação de um órgão permanente que assessore toda a Convenção com base no conhecimento tradicional. Esse órgão, aos moldes do Órgão Subsidiário de Assessoramento Técnico, Científico e Tecnológico (SBSTTA), poderia vir a ser o primeiro passo para uma metamorfose da Convenção.

Um órgão subsidiário de assessoramento com base no conhecimento tradicional ampliaria as vozes, sempre subalternizadas, de povos indígenas e comunidades locais na Convenção, o que seria no mínimo justo dado que são eles os que mais conservam biodiversidade, mas muito mais que isso, esse órgão poderia, de fato, apontar novos caminhos para a Convenção. O conhecimento de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultoras e agricultores familiares é um corpo autônomo de saberes com base em pressupostos distintos da ciência e com uma relação muito diferente com a natureza. É desse manancial que soluções para a contínua perda de biodiversidade podem emergir. Como todos os artigos da Convenção têm como objetivo último promover a conservação, um órgão subsidiário de assessoramento de toda a Convenção com base no conhecimento tradicional pode ser a chave para a mudança que se deseja.

Para a Convenção, ainda colonial, as dificuldades são múltiplas: respeitar, até às últimas consequências, o conhecimento de povos e comunidades; dar prioridade a quem conserva em detrimento de quem destrói; reverter o balanço de poder nas negociações, que espelha o do mundo; e principalmente ter coragem de mudar.

Povos indígenas e comunidades locais e a própria Convenção podem estar diante de um momento fundamental que decidirá os rumos da biodiversidade no planeta. Alimentar a criação de um órgão subsidiário forte para assessorar toda a Convenção ao invés de divisões internas que enfraquecerão a todos e, principalmente, fecharão as portas para uma possibilidade de futuro é o primeiro desafio. Muitos outros virão se esse for ultrapassado, mas uma cunha terá sido fincada. Restará martelá-la para que brechas se abram e por fim, o céu permaneça sobre nossas cabeças, nos dando seu azul.