Série Contagem Regressiva – Artigo #1: Minueto ou roda de samba?

A COP 16, na Colômbia, já passou da metade. Mas se percebe que muitas negociações nem chegaram ainda à metade, nem tampouco parecem se consolidar as expectativas depositadas no encontro.

Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade

 

Dizem que quem não gosta de samba, bom sujeito não é… E quem não gosta de minueto, será bom sujeito?

O minueto é um tipo de dança, com origem na aristocracia francesa, muito popular na corte de Luís XIV, no século XVII. O minueto se espalhou pela Europa e é dançado com uma coreografia fixa: todos sabem que passos dar e que voltinhas fazer.

Já a roda de samba, por sua vez, nasceu nas casas festivas das tias baianas na Praça Onze, no Rio de Janeiro. A roda já era a roda, até mesmo antes do samba chegar. Ali cada um tinha que ter uma música, chegava lá e começava a cantar, arrumava uns companheiros ali na hora mesmo e começava a tocar. Na sequência, já estava o povo da roda cantando e logo todo mundo tocando. A roda de samba é o construir coletivo, é aceitar o que o outro traz e, juntos, fazer melhor.

Com a Conferência das Partes da Convenção da Biodiversidade, a COP 16, que chegou, neste fim de semana, à metade cabe perguntar: em Cali se dança um minueto ou se promove uma roda de samba?

O tempo já avançou, mas se percebe que muitas negociações nem chegaram ainda à metade, nem tampouco parecem se consolidar as expectativas depositadas no encontro. Essa é a COP da biodiversidade que reúne o maior número de participantes e é a primeira depois da aprovação do novo Marco Global de Biodiversidade. Há vários assuntos a serem debatidos, mas muito gira em torno da possibilidade de garantir recursos para atividades de conservação da biodiversidade. Na COP 15, em 2022, estimou-se que seriam necessários mais 700 bilhões de dólares a cada ano, até 2030 para conseguir implementar as metas do novo Marco de Biodiversidade.

Há, naturalmente, acalorados debates sobre de onde tais recursos sairiam e como a COP, nesse quesito se assemelha a um minueto, os passos e as voltinhas são aqueles conhecidos e ensaiados por todos. A questão esbarra na relutância dos países mais ricos de aportar recursos para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade nos países mais pobres e mais biodiversos. Não há dúvida que tal atitude guarda dentro de si uma enorme injustiça e segue a lógica colonial. Há, porém, algo a se considerar se o intento é mais salvar a biodiversidade e menos se mostrar desenvolto no minueto: infinitos recursos seguem dedicados às atividades que destroem a biodiversidade e essa torneira não há quem feche. Uma voltinha, um passinho…

Outro assunto quente na COP 16 é a repartição de benefícios sobre as informações genéticas contidas em sequências digitais, as chamadas DSI (digital sequence information). Ouvi um pandeiro? O som de um cavaquinho? Não, não se enganem, aqui também não há improviso, nem samba novo. Ainda hoje, os delegados seguem discutindo a definição de DSI e há muito ainda para ser acordado acerca do funcionamento do sistema multilateral e de um eventual fundo, onde seriam depositados os recursos oriundos das repartições de benefícios. 

Nesse tema, há algo inusitado, o minueto é dançado ao som de um samba de uma nota só: farmacêuticas correm para afirmar que qualquer taxa ligada ao uso das sequências digitais para desenvolver produtos causará danos ao setor e ameaçam com aumento do desemprego. Um cenário que só corrobora a pouca vontade que os países ricos apresentam de reconhecer o uso da biodiversidade e do conhecimento tradicional e repartir os eventuais benefícios aferidos.

As discussões acerca do artigo 8j, que é aquele que reconhece a relevância do conhecimento de povos indígenas e comunidades locais para a manutenção da biodiversidade, tampouco soam como uma roda de samba. Além da significativa disparidade entre os indígenas do norte e aqueles do sul global, que participam muito menos, que precisa ser debatida, há a possibilidade de transformação do grupo de trabalho em um órgão subsidiário permanente, o que pode ser interessante principalmente se não for um órgão focado apenas no artigo 8j. Ainda assim, passinhos e voltinhas têm dado o tom.

Há inúmeros outros temas sendo debatidos na COP 16, mas o pano de fundo segue sendo o minueto. Não salvaremos a biodiversidade com meias medidas, nem evitando incomodar os poderosos. Para deter a perda de biodiversidade, que atinge proporções planetárias, seria necessário colocar três sambas na roda. O primeiro toca no ritmo da eliminação dos incentivos às atividades que destroem a biodiversidade, para tanto seria necessário criar um mapa do caminho, que descreve os passos para tanto e gera um compromisso global com cada uma dessas etapas. O segundo entoa o reconhecimento, a valorização e algum tipo de remuneração para quem conserva a biodiversidade desse planeta, ou seja, povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e a agricultura familiar. Isso significa demarcar terras, proteger corpos e territórios, dar acesso real às políticas públicas e aprender com eles estratégias para viver melhor em um mundo pior. O terceiro é um tecnosamba, trata-se de colocar a serviço de toda a sociedade, e não apenas um punhado de privilegiados, os avanços científicos e tecnológicos, caminhando rumo a uma economia mais solidária. 

Outros sambas também poderiam ser ouvidos nessa roda, mas o principal é que a música de fundo seria o samba da ética da inaceitabilidade, um compromisso que tornaria tudo que destrói o planeta e a vida das pessoas absolutamente inaceitável.

Mas, deixemos de desvarios, se não nos perderemos no salão: não daremos o passinho exato para o lado e a voltinha para a direita na hora certa. Quem diria que no país da salsa, Bach reinaria…