Por Dominik Giusti/Comunicação ÓSocioBio
A mineira Vicentina Bispo, ou simplesmente Tina, de 67 anos, é uma referência na valorização da sociobiodiversidade do Cerrado. Idealizadora da marca de alimentos “Pequitina“, sua trajetória é marcada pela criatividade, pelo amor à terra e por uma profunda conexão com sua cultura e tradição.
Tudo começou quando, devido a questões de saúde, precisou se afastar de sua carreira como alfabetizadora e encontrou nos frutos do Cerrado uma nova forma de trabalho e expressão.
A partir de experimentos e inovações, Tina transformou sua vida, criando produtos como a farofa de pequi, além do inovador pequi desidratado, que se tornaram símbolos de sua luta pela valorização desse bioma.
Além de sua atuação como produtora, Tina também foi uma figura central na articulação da Lei 15.089/2025, que instituiu a Política Nacional para manejo sustentável, plantio, extração, consumo, comercialização e transformação do pequi e demais frutos do Cerrado, sancionada neste mês de janeiro pelo presidente Lula.
Em 2023, a produção de pequi no Brasil alcançou 51.371 toneladas, gerando um valor de produção de R$ R$ 65,7 milhões. Os dados são da Pesquisa da Extração Vegetal e Silvicultura (PEVS), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Minas Gerais destacou-se como o maior produtor nacional desse fruto, reforçando sua importância no extrativismo e na economia regional. Esses dados evidenciam a relevância do pequi, tanto na alimentação tradicional quanto em outros setores, como o mercado de óleos e cosméticos.
Apesar do volume expressivo, a cadeia produtiva do pequi pode ter potencial de expansão, especialmente em regiões onde sua presença cultural e ecológica é marcante, como o Cerrado brasileiro.
Nesta entrevista, Tina compartilha sua história, suas criações e seus planos para o futuro, mostrando como a valorização do Cerrado é uma causa que une tradição, inovação e resistência.
Como é a sua história com a Lei do Pequi, já que você esteve na cerimônia de sanção, em Brasília?
A lei já existia, mas estava adormecida numa gaveta, em Minas Gerais. O deputado federal Rogério Correia (PT-MG), que na época era deputado estadual, perguntou o que precisava para tirar a lei do papel e nos apoiou. Com isso, a lei foi promulgada em nível estadual, mas sabíamos que não era suficiente. Então, ele continuou o trabalho no Congresso Nacional, quando se elegeu deputado federal, levou a questão para Brasília. Foi uma luta, porque teve alguma rejeição, mas, com apoio, a coisa andou.
Como você começou a trabalhar com os frutos do Cerrado?
Eu era alfabetizadora, mas, por problemas de saúde, precisei sair da sala de aula. Para sair da ociosidade, comecei a buscar algo novo, me ocupar. Foi assim que os experimentos com os frutos do Cerrado surgiram. Aos poucos, fui aprendendo, inventando, errando e acertando. O pequi só era consumido in natura ou em conserva. Faltava algo que pudesse ser consumido fora da safra, sem precisar de refrigeração. Eu consegui desidratar, algo que ninguém fazia na época. Isso repercutiu, fui para feiras em Belo Horizonte, participei de audiência pública e lá a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) pediu para fazer análise nutricional do produto. Foi o que deu esse “boom”. Já são mais de 20 anos nessa luta, e fico muito feliz com o resultado.
Como surgiu a ideia da farofa e dos outros produtos?
Foi tudo aos poucos. Na época, meus pais estavam vivos. Eu falava para o meu pai que tinha dó de jogar fora algumas sobras. lembro de dizer ao meu pai: “Tô com dó de jogar fora”. Ele, com a calma e sabedoria que sempre teve, respondeu: “Uma hora a gente descobre uma forma de fazer alguma coisa”. Meu pai foi um grande incentivador. Antes de falecer, ele teve um problema de saúde e eu estava de malas prontas para viajar. Fiquei sem ânimo, mas mesmo doente, ele me disse: “Você vai sim. Nem por mim, nem por sua mãe, deixe de fazer os seus produtos. Muita gente já está lhe procurando, continue. Não abandone por nada nesse mundo. A carreira não vamos poder lhe dar, mas você vai longe”. Meu pai, que fazia celas de animais com tanto capricho, mesmo idoso, ainda me ajudava com ideias. Ele dizia que eu lembrava uma irmã dele, que descobria coisas do nada. Lembro de uma vez que tínhamos muita castanha e eu não sabia como lidar com os espinhos. Ele pegou uma foice, colocou numa madeira e fez uma engenhoca, uma espécie de guilhotina, que hoje o pessoal do baru usa. Ele me disse: “A sua preocupação acabou, agora vai tirar as cascas e trabalhar. Os espinhos? Você se vira, compra uma pinça e tira tudo”. Aquilo foi um marco. Meu pai estava feliz de ver sua criatividade ajudando na produção.
Teve algum momento marcante na criação dos produtos?
Teve o sonho que me guiou para trabalhar com os espinhos das castanhas. Sonhei que eu estava peneirando areia no fogo, e quando a areia caía, surgiam fagulhas bonitas. Acordei às 3h da manhã e pensei: “E se eu passar as castanhas no fogo?” Peguei uma peneira de arame, passei as castanhas com espinhos na chama e, assim como no sonho, eles se soltaram. Meu pai acordou, viu o que eu estava fazendo e soltou uma de suas brincadeiras: “Até que você deu um peido que cheirou!”. Foi um momento que destravou minha produção com as castanhas. Hoje, faço o doce de corte das castanhas, que fica igual ao amendoim, além de cristalizados, conservas, farofas e condimentos. Meu carro-chefe é a farofa. Também faço arroz com pequi, que é um sucesso. Em eventos gastronômicos, já cozinhei 40 quilos de arroz de uma vez, fora a carne e os temperos. Cada panela tinha seis quilos, era carregada por duas pessoas. O pequi faz toda a diferença no aroma e no sabor. É um trabalho pesado, mas o resultado é incrível.
Durante a pandemia, você criou novos produtos. Como foi esse processo?
Sem muitas ocupações, resolvi experimentar. Comecei com uma barrinha usando arroz desidratado, arroz integral e flocos de arroz. Fui provar… parecia isopor! Mas, olhando para a quantidade de castanha que eu tinha, pensei: “Vou desenvolver uma barrinha com isso”. E assim começou. Minha família foi a cobaia. Usei castanha de pequi, baru, farinha de jatobá, melado de cana e mel. E não é que deu certo? A barrinha ficou uma delícia! O único desafio era acertar o formato. Depois de várias tentativas, descobri que usar uma régua ajudava na padronização. Hoje, já produzo as barrinhas e faço parte de um projeto da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) para investir na padronização. Já conquistei o registro de propriedade industrial e estou aguardando equipamentos novos, incluindo uma máquina para triturar as castanhas em maior quantidade e com granulometria padronizada. Por enquanto, ainda uso o liquidificador, o que deixa alguns pedaços maiores e outros menores – um pouco maior que o gergelim, que acho ideal.
O que você leva de aprendizado de experimentar com os produtos da sociobiodiversidade?
Aprendi muito no processo. Em uma das tentativas, usei pouco mel, e a mistura não deu liga, ficando solta. Mas não joguei fora. Pensei: “Por que não fazer granola?”. Acrescentei aveia em flocos maiores e ficou ótimo! Foi mais uma ideia que nasceu de um “erro”. Além disso, minha sobrinha precisava de um projeto escolar no ano passado e resolvemos adaptar a farinha de jatobá. O resultado foi incrível. Vendemos pacotes por R$5, e a demanda foi tão grande que acabamos compartilhando a receita. Castanhas de pequi e baru só trouxeram alegria para minha vida. Tive a oportunidade de contar com três estagiários que realizaram análises, e os testes mostraram que as barrinhas do Cerrado superaram até marcas nacionais e internacionais. E, como bônus, a granola virou um sucesso. Agora, estou planejando ampliar a produção com quatro sabores principais: buriti, baru, pequi e jatobá. Cada um deles é um superalimento, repleto de nutrientes. Porém, como são tão ricos, oriento sempre consumir com moderação.
E a geleia de maracujá do mato com castanha de pequi?
Foi durante a pandemia que surgiu uma oportunidade incrível. Foi lançado um edital para um festival gastronômico que selecionaria produtos feitos a partir da sociobiodiversidade. Entre as categorias estavam geleias, licores, doces e compotas, todos valorizando os frutos do Cerrado. Resolvi participar com três produtos: compota de castanha, geleia de maracujá do mato e conserva de castanha. Um dos critérios era enviar os produtos com rótulo, nome fantasia e receita. Pensei muito no nome que daria aos meus produtos. Maracujá e pequi têm nomes masculinos, então decidi chamar a geleia de maracujá do mato com castanha de pequi de Macho do Cerrado. Encarei o desafio, preparei tudo direitinho e enviei. O resultado foi divulgado em um evento online, com 79 ou 89 inscritos. Cada participante recebeu comentários sobre seus produtos. Quando chegou minha vez, uma das avaliadoras começou dizendo, de forma descontraída: “Experimentei o Macho do Cerrado… Se meu marido escutar isso, vou me divorciar!” Todos riram, mas o que veio em seguida foi emocionante. Ela comentou que a geleia a transportou para uma experiência gastronômica na França. Comparou os frutos do Cerrado com sabores franceses, elogiando a textura, o sabor e o aroma do meu produto. Entre tantas inscrições, fiquei entre os 10 primeiros. Foi uma alegria enorme ser reconhecida em meio a tantas pessoas talentosas.
Quais são os maiores desafios do Cerrado hoje?
O desmatamento é um grande problema. Cortam a vegetação para fazer carvão, drenam as veredas. Precisamos transmitir para as pessoas a importância de respeitar o Cerrado.
E quais as perspectivas para o futuro?
Agora, a meta é fazer a lei chegar a todo o Cerrado. Também quero continuar criando produtos e levar esse conhecimento para frente, para que as próximas gerações respeitem e valorizem o que temos.
O que o Cerrado significa para você?
O Cerrado nunca te deixa na mão. Ele sempre te dá algo. É um bioma maravilhoso, cheio de possibilidades. Trabalhar com ele só me trouxe alegria. E é muito bom ver o resultado do trabalho sendo reconhecido.