Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade
Quem é você? Seu corpo? Seu DNA? Seu cérebro? Seu coração? Seus pensamentos? Suas relações com o mundo?
O que faz de você, você? Seu genoma? As relações do mundo com você? Como os outros seres se veem? Seu cheiro? Sua voz? Aquele gesto, só seu?
Será que você poderia ser convertido em uma sopa de letrinhas? Será que o seu genoma é você? Será que basta conhecer o seu DNA para que você se torne uma criatura perpétua?
Faço todas essas perguntas, porque elas estão, em última instância, amalgamadas à questão das sequências digitais de informação genética, as DSI (digital sequence information), como são conhecidas no âmbito da Convenção da Biodiversidade, que serão objeto de um dos debates mais quentes da COP 16.
A ideia por trás das DSI é a desmaterialização dos organismos vivos, suas partes e substâncias, transformados em sequências de DNA que, teoricamente podem ser retraduzidas em aminoácidos, proteínas, metabólitos e até mesmo organismos. A Convenção da Biodiversidade acompanhou o crescimento dos bancos de sequências digitais de informações genéticas por alguns anos, se deixando levar pela ideia de que ali não caberia repartição de benefícios, como se tais sequências não pudessem ser consideradas parte da biodiversidade.
Em 2016, porém, o grupo de países africanos, com o apoio do Brasil, se insurgiu contra essa ideia e forçou que o tema fosse debatido dentro da Convenção, alegando que, evidentemente, as sequências digitais são parte da biodiversidade mundial e que se boa parte do uso que a biotecnologia faz da biodiversidade passa por essas sequências, um dos grandes objetivos da Convenção, a repartição de benefícios derivados do uso da biodiversidade, estava sendo deixado para trás. Enfrentou, naturalmente, resistências, mas conseguiu trazer essa discussão para o centro das preocupações da Convenção e finalmente em 2022, o tema passou a ser tratado de forma mais operacional. De lá, da COP 15, surgiu uma decisão que insta a Convenção a criar um mecanismo multilateral para cuidar da repartição de benefícios derivada do uso dessas sequências.
A questão tem diversas nuances, algumas delas operacionais. Há mais do que 260 bilhões de sequências armazenadas nos bancos de sequências digitais, das quais menos de oito milhões têm informações sobre sua origem geográfica. Como repartir benefícios assim? Com quem dividir os eventuais benefícios oriundos do uso dessas sequências para a criação de algum produto? E o conhecimento tradicional intrínseco a essas sequências, tradução genética de organismos ou parte deles, como pode ser reconhecido e remunerado?
Essas e muitas outras questões desse tipo serão alvo de um grande debate em Cali nos próximos dias, durante a COP 16. Uma alternativa que se desenha no horizonte é o estabelecimento de um sistema multilateral, onde aquele que usar sequências digitais para gerar produtos e ganhar algo com isso, deverá repartir benefícios com um novo fundo global. A gestão e a governança desse fundo permanecem, naturalmente, alvos de debates: há quem defenda que os recursos sejam destinados diretamente aos povos indígenas e às comunidades locais – os guardiões da biodiversidade desse planeta – e que o controle do fundo esteja nas mãos desses povos e comunidades e outros que com isso não concordam. É uma ideia interessante, especialmente para uma Convenção que ainda aguarda seu giro descolonizador. Dificilmente será possível resolver o assunto nessa COP e mais difícil ainda será começar esse giro. Recomenda-se paciência, algo quase impossível, em um mundo onde não é mais possível esperar.
Há outras nuances, essas que se comunicam com as perguntas que abrem esse texto. Será possível substituir seres vivos por sopas de letrinhas, sequências digitais de DNA? O recente debate sobre o projeto de reviver o tigre da Tasmânia, espécie extinta há 90 anos, mostra que talvez não baste ter um genoma completo para ressuscitar espécies: um animal com o DNA do tigre da Tasmânia nascido num mundo onde não há nenhum outro de sua espécie e onde o ambiente já mudou radicalmente é um tigre da Tasmânia? A possibilidade de reviver espécies dá, talvez, um conforto diante da tão proclamada inexorabilidade da extinção, mas será que tal conforto, a exemplo de tantas outras promessas da tecnologia, não pode nos conduzir a cenários ainda piores? Por exemplo, a possibilidade de guardar sequências digitais, genomas, ou algo assim pode dar a alguns a sensação de que podem prescindir do mundo natural e dos esforços para conservá-lo, uma vez que tudo poderia ser recriado. Mas será possível recriar uma floresta? Será que bastaria – se conhecêssemos todas – recriar as espécies? E as relações entre elas? Históricas, evolutivas, contingenciais, onde ficariam?
Outras questões alimentam esse debate, como os recursos utilizados para trazer de volta espécies extintas em um mundo onde há tantas outras ameaçadas de extinção e onde muitas vezes faltam recursos para a conservação da biodiversidade.
Desmaterializar organismos e suas partes, armazená-los em sequências digitais pode ter muitas utilidades, com benefícios para a humanidade. As sequências que são exclusivas de cada espécie servem de identificadoras, ajudando a caracterizar microrganismos e a reconhecer a presença de espécies em diversos contextos. Possibilidades de desenvolvimento de produtos a partir das sequências também se ampliam. Ou seja, informações genéticas dispostas em sequências digitais são de grande serventia.
Essas possibilidades, porém, não devem nos cegar para outros compromissos que devemos assumir com a biodiversidade do planeta e com quem a conserva. Sopas de letrinhas não são seres vivos em interação dinâmica com um ambiente em constante transformação. Mas, ainda assim, quem usa as letrinhas e ganha com isso, deve alguma coisa a quem conservou seres e ecossistemas de onde as letrinhas saíram.