Série Contagem Regressiva – Artigo #9: O para sempre, sempre acaba…

Confira artigo da série "Contagem regressiva" para a COP 16 da Diversidade Biológica, o texto #9.

 

Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade

 

Talvez aquela ideia de que haja coisas que são para sempre precise mesmo ser revisitada. Até a primavera, que Pablo Neruda dizia ser impossível adiar, não parece mais ser uma garantia para sempre. O rio que sempre subia, não sobe mais; as andorinhas que sempre chegavam, não chegam mais; as cigarras que sempre cantavam, não cantam mais.

Nossa pegada no planeta, que poderia ser chamada com o perdão do péssimo trocadilho de nossa predada no planeta, tem diversas dimensões. Pelo menos duas são facilmente perceptíveis: o impacto direto da destruição, biomas, paisagens, rios, espécies, florestas e muito mais e o impacto um pouco menos direto das atividades de intervenções, como a introdução de espécies exóticas e o desenvolvimento de tecnologias que resolvem um problema mas criam vários outros. O resultado é que a ideia de fenômenos que acontecem para sempre fica em xeque nessas duas dimensões, mas de formas contrárias. Se a destruição de ambientes, por exemplo, leva à conclusão de que espécies e paisagens se extinguem, a tecnologia nos assegura que é possível restaurar tanto os ambientes quanto as espécies. Se a emissão de gases de efeito estufa nos leva a pensar que a primavera que sempre chegava, talvez não chegue mais, a tecnologia nos garante que haverá soluções.

Perde-se o impacto do “para sempre”, mas será que se ganha esperança? Ou ilusão?

Em relação à biodiversidade, essas duas dimensões se retroalimentam, conduzindo cada vez a mais perda. Se podemos trazer uma espécie extinta de volta, por que deveríamos nos preocupar com seu desaparecimento? Se podemos restaurar uma floresta, por que deveríamos nos angustiar com sua destruição?

Mas a biodiversidade não é só um conjunto de espécies. Floresta não é coletivo de árvores e sim de relações. Biodiversidade é a natureza com seus infinitos processos e dinâmicas das quais pouco sabemos. Não basta trazer uma espécie de volta, pois seu desaparecimento conduz a mudanças gigantescas em seu ambiente. Não basta replantar árvores de uma floresta pois sem elas inúmeros outros seres vivos e processos ecológicos ficam comprometidos. Como a tecnologia poderia dar conta de todas essas interações? Como é possível traduzir para a linguagem tecnológica o intraduzível? O impensável? O inconcebível?

A comoção das pessoas quando ficam sabendo que há apenas uns 75 rinocerontes de Java no mundo e que a população total de rinocerontes não passa de 30 mil indivíduos em todo o planeta Terra revela uma empatia ou talvez no caso do rinoceronte, uma simpatia pelos animais ameaçados. Essa empatia é, evidentemente, maior quando se trata de mamíferos, aves e alguns outros poucos animais. Ainda assim, para além de atividades pontuais para tentar salvar espécies, a dinâmica global, causadora maior dessas extinções e ameaças, persiste e se aprofunda.

A perda de biodiversidade pode ser percebida de diversas formas, o desaparecimento de espécies é uma das formas mais impactantes, ainda mais quando era acompanhada da frase “extinção é para sempre”. Apesar das extinções continuarem acontecendo regularmente e cada vez em um ritmo maior, talvez a extinção não seja mais para sempre. Há projetos de reviver o mamute, extinto no Ártico há cerca de quatro mil anos, e realocá-lo na Sibéria; de trazer à vida o tigre-da-Tasmânia (ou lobo-da Tasmânia, como alguns preferem), marsupial carnívoro da Oceania extinto no século XX; ou ainda de clonagem de cavalos Przewalski, única espécie restante de cavalos selvagens que está criticamente ameaçada e extinta na natureza, da qual os cavalos domésticos divergiram há cerca de 500 mil anos.

A ideia de que a extinção não é para sempre e que podemos resgatar as espécies desaparecidas pode dar algum conforto para os que sofrem com o fim de animais incríveis, mas será que é de fato a solução, ou parte da solução, para a perda de biodiversidade? O que acontece quando uma espécie é reintroduzida em um ambiente? Que novas relações se formam? A resposta é não sabemos direito. Mas podemos fazer a pergunta contrária: o que acontece quando uma espécie desaparece de um ambiente? E tampouco teremos a resposta completa. Que questões suscitariam o desaparecimento de biomas inteiros como a Mata Atlântica, as florestas de Madagascar ou a vegetação da bacia do rio Mekong?

Os entusiastas da tecnologia se apressariam em dizer que os problemas serão resolvidos, basta investir mais em inovação e pesquisa; já os detratores afirmariam que a tecnologia não resolverá todos nossos impasses e que em muitos casos, ela gera mais desigualdades. Como frequentemente, a discussão fica polarizada e não combinamos argumentos dos dois lados para construir possibilidades.

Não podemos contornar a ponderação de que a tecnologia nos trouxe até aqui, para o bem e para o mal. Isso quer dizer que ela poderá prover soluções mas possivelmente não para todos os problemas. Não podemos evitar tampouco a constatação de que a tecnologia, cada vez mais concentrada em mãos privadas, não é acessível a todas as pessoas do planeta, deixando à margem grandes contingentes populacionais.  Muito menos, podemos desconsiderar a visão que a maioria das pessoas tem da tecnologia: uma espécie de babá de uma criança mimada que passa atrás dela, arrumando tudo que a criança estraga: se quebra o vaso, colamos; se extingue espécies, trazemos de volta; se destrói florestas, restauramos; se polui todos os rios, dessalinizamos  o mar; se acaba com a estabilidade climática, bom, algum jeito a pobre babá dará…

É preciso ainda pensar que muitas soluções para os dilemas ambientais que enfrentamos não estão na tecnologia, nem na inovação e sim na incorporação de técnicas e práticas ancestrais. Formas de lidar com o mundo de povos indígenas e comunidades tradicionais, mas aqui, é possível se confrontar com a ideia de que há coisas que parecem existir para sempre, como o racismo, a discriminação e o colonialismo. Essas práticas ainda são vistas como atrasadas e primitivas, como se transformar um planeta convidativo para nossa espécie em um mundo hostil, não fosse justamente a coisa mais atrasada possível.

Um dos debates mais quentes da Convenção da Biodiversidade atualmente está em torno das soluções baseadas na natureza. Uma espécie de nova panaceia para tudo e qualquer coisa. A ideia dessas soluções é mimetizar os processos naturais. Sistemas de biorretenção que interceptam escoamentos superficiais da chuva e ajudam a garantir qualidade e disponibilidade de água e telhados verdes que reduzem o calor no interior dos prédios e interceptam a chuva são exemplos de soluções baseadas na natureza.

Essas soluções estão presentes nos textos de duas das metas do novo Marco Global de Biodiversidade. A meta 8, que versa sobre clima, preconiza as soluções baseadas na natureza como estratégias para redução dos efeitos das mudanças climáticas e da acidificação dos oceanos sobre a diversidade biológica. A meta 11 trata dos serviços ecossistêmicos e recomenda o uso de soluções baseadas na natureza para ampliar a proteção contra desastres e para manter e restaurar esses serviços.

Evidentemente, usar a natureza como inspiração para tentar mitigar o estrago que nossa espécie produz no planeta é sempre uma excelente ideia, mas fica a pergunta: será que não seria útil recomendar também soluções baseadas em conhecimentos tradicionais? 

Será que não passou da hora de admitir que se queremos ideias para adiar o fim do mundo, não devemos procurá-las nas dinâmicas que nos trouxeram até a beira do abismo e sim naquelas que podem nos ensinar a viver melhor em um mundo pior?

Por fim, cabe deixar aqui a frase do Andrew Pask, pesquisador responsável pelo laboratório que cuida da pesquisa genômica para restaurar e trazer de volta a vida o tigre-da-Tasmânia, na Universidade de Melbourne, na Austrália: “as pessoas dizem que nós estamos brincando de Deus no nosso trabalho. Mas a gente brincou de Deus quando varremos do mapa o tigre-da-Tasmânia. Meu trabalho está procurando formas de curar a biodiversidade perdida.”  

Se começamos com Pablo Neruda, talvez valha a pena terminar com um verso de Álvaro de Campos:

“Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?”