Por Nurit Bensusan, especialista em biodiversidade
A forma mais comum de avaliar uma situação, entre nós, humanos cozidos no caldo da civilização ocidental, é usar indicadores quantitativos. Temos números para a temperatura do planeta, para quantos somos, para o PIB, para a desigualdade, para as extensões territoriais, para o nível do mar, enfim, até mesmo índices numéricos de felicidade e bem estar tem sido concebidos.
Não é, portanto, de se estranhar que tenhamos também números acerca da diversidade biológica. Temos estimativas que nos dizem que nossa ciência já teria descrito aproximadamente 1,5 milhão de espécies e que haveria cerca de nove milhões de espécies no planeta. Temos números também sobre as taxas de extinção, estimativas [1] recentes mostram que essas taxas estão 1000 vezes maiores que as taxas usuais de extinções naturais. O levantamento de 2019 do IBPES [2] revela que as taxas de extinção de espécies animais e vegetais estão aumentando rapidamente. A abundância média de espécies nativas na maioria dos principais habitats terrestres caiu em, pelo menos, 20%, desde o início do século XX. Mais de 40% das espécies de anfíbios, quase 33% dos corais e mais de um terço de todos os mamíferos estão ameaçados.
Números… Números de uma contagem regressiva, números que expressam nosso papel de principal predador do planeta. Mas, números que não revelam sequer a metade do problema. A biodiversidade é composta de espécies, organismos e ecossistemas – passíveis, com diferentes graus de dificuldade, de serem contados – mas a biodiversidade é também constituída de relações, interações entre as espécies e seus habitats. Essas são bem mais difíceis de contabilizar principalmente porque boa parte delas é desconhecida para nós e porque envolvem conexões complexas.
Dois exemplos históricos para ilustrar: o primeiro descrito por Darwin na Origem das Espécies. Trata-se da relação aparentemente inexistente entre mamangavas e gatos, mas os ratos são predadores dessas abelhas e com a presença de inúmeros gatos, as mamangavas ficam a salvo diante da ausência de ratos. Esse exemplo, razoavelmente simples, nos convida a um exercício que nos permitiria ligar todas as espécies do planeta e assim perceber parte das relações existentes e das consequências relacionadas com o desaparecimento das espécies e mesmo da diminuição de suas populações.
O segundo exemplo é a conhecida história da reintrodução dos lobos no Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos, em 1995, de onde eles tinham sido eliminados 70 anos antes. A reintrodução começou com 14 lobos e na sequência mais algumas dezenas foram levadas para o Parque. Essa reintrodução revolucionou a vida no Parque. Em suma, sem os lobos, os alces e veados não tinham predadores, circulavam em toda a área do Parque e comiam vorazmente a vegetação dos vales existentes. Com a chegada dos lobos, esses animais foram obrigados a se refugiar nas áreas mais altas, abandonado a vegetação dos vales. Essa vegetação, por sua vez, cresceu atraindo mais aves, insetos e castores. Esses últimos começaram a construir barreiras, represando a água dos rios, atraindo lontras, peixes, anfíbios e patos. A população de coiotes diminuiu pois eles passaram a ser caçados pelos lobos, conduzindo a um aumento de coelhos e ratos, que por sua vez, atraíram seus predadores, falcões, doninhas e raposas. Corvos e texugos apareceram para comer as sobras dos animais caçados pelos lobos. Até os ursos reapareceram, com a caça farta e o aumento das frutas na vegetação. Por fim, essa vegetação estabilizou as margens dos rios mudando e consolidando seus cursos.
Boa parte dessas consequências não foi prevista e surpreende até hoje. Esse exemplo ajuda a mostrar quão pouco sabemos das interações entre os organismos. Sequer falamos da diversidade de plantas – tratando a vegetação como um bloco – nem da pluralidade de micro-organismos que certamente foi afetada por tais transformações. Ou seja, não temos como dimensionar as consequências da perda da biodiversidade, mas podemos desconfiar que haverá impactos negativos sobre uma série de serviços ecossistêmicos que a natureza nos oferece, transformando esse planeta convidativo para a nossa espécie, em um mundo hostil.
Muitas dessas relações entre os elementos da biodiversidade, muitas vezes de difícil percepção, fazem parte do cotidiano de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. O conhecimento desses povos poderia ajudar a medir as consequências de nossa irresponsabilidade com os seres com quem compartilhamos o mundo, bem como colaborar para restaurar algumas das interações já degradadas.
Cada número que cresce, refletindo mais uma espécie ameaçada, carrega com ele um universo de possibilidades de impactos, sejam novas pandemias, sejam novas pragas, sejam consequências sobre a qualidade e a disponibilidade de água, sobre a fertilidade dos solos, sobre a estabilidade climática, entre muitos outros.
Aparentemente, tal cenário não está cristalino para boa parte da humanidade que segue consumindo desenfreadamente, convivendo em harmonia com desmatamento e acreditando que soluções tecnológicas cairão do céu. Não cairão e nesse ritmo nem mesmo o céu continuará acima de nossas cabeças nos dando seu azul e nos convidando para a dança cósmica.
Série “Contagem regressiva” para a COP 16 da Diversidade Biológica
A série Contagem regressiva é uma tentativa de mostrar em 10 textos como a biodiversidade está em xeque, como a sociobiodiversidade continua não sendo valorizada como pilar obrigatório de qualquer estratégia de conservação da biodiversidade e como o sistema que persiste destruindo as paisagens naturais segue dando as cartas.
[1] Vos, Jurriaan & Joppa, Lucas & Gittleman, John & Stephens, Patrick & Pimm, Stuart. (2014). Estimating the Normal Background Rate of Species Extinction.. Conservation biology : the journal of the Society for Conservation Biology. 29. 10.1111/cobi.12380.
[2] Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services: https://files.ipbes.net/ipbes-web-prod-public-files/downloads/spm_unedited_advance_for_posting_htn.pdf